PALCO

(1980, gravada por A Cor do Som em Transe total, 1980, e por Gil em Luar, 1981.)

Escolhida por Nara Gil

Subo nesse palco

Minha alma cheira a talco

Como bumbum de bebê

De bebê

Minha aura clara

Só quem é clarividente pode ver

Pode ver

Trago a minha banda

Só quem sabe onde é Luanda

Saberá lhe dar valor

Dar valor

Vale quanto pesa

Pra quem preza o louco bumbum do tambor

Do tambor

Fogo eterno pra afugentar

O inferno pra outro lugar

Fogo eterno pra consumir

O inferno fora daqui

Venho para a festa

Dei que muitos têm na testa

O deus Sol como um sinal

Um sinal

Eu, como devoto

Trago um cesto de alegrias de quintal

De quintal

Há também um cântaro

Quem manda é a deusa Música

Pedindo pra deixar

Pra deixar

Derramar o bálsamo

Fazer o canto, cantar o cantar

Lalaiá

Fogo eterno pra afugentar

O inferno pra outro lugar

Fogo eterno pra consumir

O inferno fora daqui

Comentário de Gil: "Eu estava havia três dias pensando em parar de cantar; em deixar a sequência profissional de discos e shows. Estava prestes a tomar essa decisão – e avisar todo mundo –, mas não por uma razão que tivesse a ver com cantar, que é a coisa que mais me encanta na vida. Minha sensação era de fastio; eu queria era um elemento que me trouxesse um ânimo novo. 'Se eu vou parar mesmo', pensei, 'eu tenho que fazer uma declaração pública, e essa declaração tem que ser musical'. Aí eu fiz 'Palco', uma canção que era na verdade pra não deixar dúvida a respeito de tudo o que cantar representa para mim e a respeito da minha relação com a música – simbolizada de forma completa pelo estar no palco."

De que fala "Palco" ("o primeiro afoxé forte") – "De um espaço semi-sagrado; da sua função exorcizante, catártica, clínica – daí o refrão (na hora em que compus, eu me lembrava muito do pouco que sabia sobre as tragédias gregas, o palco grego, Dioniso).

De um sacerdócio; da capacidade de administrar um ritual – o da música em funcionamento, cumprindo seus ditames; de como eu me vejo nesse papel, como eu fantasio a minha visão e como eu vejo essas fantasias do meu próprio olhar.

Do aspecto transmutador da música para mim no palco: de como estar ali faz provavelmente desaparecer uma opacidade natural do caráter bruto das coisas comuns, sem sabores especiais, do cotidiano, e como o haver ali sabores especiais em tudo me dá um aspecto de transfiguração – daí a ideia de que ali se propicia que alguém veja minha aura."

Compor e cantar – "Duas dimensões e dois retornos diferentes à alma. Compor é motivo de extraordinário, transcendental orgulho pela vida, o de fazer parte do universo da criação; cantar é motivo de vaidade. É muito envaidecedor estar num palco e produzir prazer instantaneamente para todos – uma afirmação anímica de vida da música através das energias dos corpos humanos ao vivo. No palco, além de diversão, a sensação é de doação, de benfeitoria do homem para o homem. Já o momento da composição é solitário, individual, e, ao se esgotar, daí por diante é como se a música partisse para o mundo, como um filho. Cantar é reabraçar os filhos, reuni-los de novo ao seu corpo, fazê-los parte do seu corpo."

"Cantar o" = "cântaro" – "Quando eu digo 'cantar o', eu digo de novo 'cântaro'. Mais do que rima, é recomposição: a palavra 'cântaro' é reconstituída, como se tivessem embutido ali o cântaro. Muitas pessoas não devem nem perceber o 'cantar o'; na audição deve prevalecer 'cântaro' mesmo."